domingo, 2 de setembro de 2007

OS DESMEMORIADOS-Autoria: IDENY DITZEL FREITAS

Você já se imaginou com amnésia? Como deve ser estranho olhar ao redor e não conhecer nada, não saber quem são as pessoas sorridentes ou curiosas à sua frente, ou alguém que você "nunca viu antes" te tratando com intimidade? É uma coisa bem esquisita e desesperadora, mais desesperadora que esquisita, deveras. Você quer lembrar, quer saber quem é, e para isto tem de contar com a explicação de "estranhos", confiar que estão dizendo a verdade. Agora imagine duas pessoas desmemoriadas, tendo apenas uma à outra, e nada sabem a respeito de si, nem sequer sabem quem é a que lhe faz companhia , naquele mundo de esquecimento... fica estranho não? Digamos que estejam num local distante de tudo, estranhas... perdidas, verdadeiramente perdidas! Não posso imaginar situação pior... Se duas pessoas desmemoriadas, perdidas, se olhando indagativa e desesperadoramente, já nos parece algo terrível, imaginemos então um "vagão" de trem cheia delas...De repente, se encontram, às duzias, às centenas, todas desmemoriadas. Nem sequer recordam do incidente que as atirou para fora da realidade. A lesão de umas difere em grau da lesão de outras, causando danos irreversíveis a uns, e graus de amnésia de maior ou menor gravidade em outros. Mas no geral, ninguém lembra nada. Só que, embora a memória de todos tenha se ido, a vida continua e todos continuam a sentir as necessidades básicas, comer, beber, dormir, fazer suas necessidades fisiológicas, e satisfazer a libido. Todos vão levando a vida conforme estas necessidades, a população do vagão vai aumentando, gerações se vão, outras vêem, as que vieram perguntaram -se , qual suas origens, mas ninguém sabia contar, ninguém lembrava nada. Com o tempo, as pessoas que iam nascendo dentro daquele túnel( o vagão havia caído num túnel escuro), passaram a acreditar que aquele túnel era tudo que existia, esqueceram-se de fazer mais perguntas e contentaram-se com o que tinham e com o que sabiam. Vez ou outra alguns tiveram flashs de memória, onde vislumbraram um mundo diferente, uma vida diferente, e passaram a imaginar que existia vida além dali. Estes eram recriminados, ninguém possuia coragem e ousadia suficiente para abandonar o mundo conhecido e partir pela escuridão, em busca de novos mundos. Então, melhor seria, para que a alienação nao se espalhasse, colocando em risco a segurança dos habitantes do túnel, que, aquele que ousasse expor suspeitas a respeito de novos horizontes, fosse apedrejado até a morte. Com toda essa supressão, qualquer laivo de memória era ignorado, e os anos, as décadas, os séculos foram se passando... até que esta geração, que vive agora no túnel... já considera o túnel seu lar. Tudo foi feito para se melhorar a condição de vida, em todas as áreas. Hoje, dão-se festas, procriam-se, amam-se, apaixonam-se, e matam-se!As pessoas vivem num objetivo único, o de ser feliz no tunel, a única vida que conhecem. Ninguém, porém o consegue. Um dia se ri, outro dia se chora, as pessoas não amam com afeição sincera, e frustram umas às outras, os filhos que tanto amam, não têm a segurança de um mundo bom...causando aflições às suas famílias, a competição levou à guerra, à maldade, e tudo que restou a estes seres, foi o amor próprio, centralizado, a luta pela sobrevivência.Um dia, LAZ encontrou nas paredes daquele túnel, uma pedra contendo entalhes de desenhos intrigantes. Sonhos e devaneios de alguém que não podendo expor o que antevia em seus laivos de memória, registrou-os secretamente. Junto destes, haviam enormes lascas de pedras contando em figuras esmeradamente fiéis, o incidente, que os arremessou àquela situação. Muita coisa LAZ não conseguia entender, explicações do que nunca na vida presenciara, nem em sonho, só poderiam não ser compreendidas senão de forma muito restrita. Era coisa de centenas, milhares, milhões de anos passados? Não sabia! O que fazer com o achado, muito menos poderia imaginar. A quem confiaria o que achara? Intuitivamente LAZ sabia que melhor era ter cautela. Enfiou as lascas de pedra, de volta na fresta escura, o mais fundo que pode, e disfarçou a entrada, saiu dali ainda a pensar no que faria, ainda não consciente de que desde que seus olhos pousaram nas ilustrações daquelas pedras, nunca mais seu coração teria sossego, como se uma saudade estranha o atacasse, tornando-o diferente dos demais habitantes daquele mundo limitado. Muito menos sabia ele, que, na escuridão de onde agia sorrateiramente, dois olhos maliciosos o fitavam, os olhos de STAT, Senhor do Túnel, e estes olhos o seguiriam por onde quer que ele andasse dali por diante.LAZ andou com seus passos confusos, pela escuridão do túnel, confusos não pela escuridão, pois só a escuridão estas pessoas conheciam, suas visões foram se adaptando a escuridão, de tal modo, que, o que para nós seria totalmente breu, impossivel de se enxergar um dedo diante do nariz, para eles representava a claridade, a luz. LAZ estava trôpego era pelo que seus olhos tinham visto e gravado em sua mente, causando estranha sensação de inquietude. Atrás de LAZ vinha STAT sempre atento, e este último sorriu aliviado quando viu LAZ entrar para a sala dos conformados, uma espécie de templo escavado numa lateral bem no fundo do túnel, onde se reuniam pessoas aparente e reconhecidamente boas, que queriam fugir da violência praticada lá fora. STAT exercia poder sobre estes, ensinava-lhes a viver bem, serem bondosos, fugir do mal e da perversidade. STAT não conseguia manter a ordem no túnel todo, mas na parcela que freqüentava sua câmera, mantinha-os todos conformados, esforçados no bem, e fiéis à sala comunitária dos praticantes do bem.STAT sorriu para LAZ, perguntando-lhe como estava.
Intuitivamente, LAZ soube que deveria omitir o que descobrira, e assim o fêz. Então STAT fêz um gesto, e muitas donzelas vestidas de branco iniciaram o côro. A música inebriante, manteve LAZ esquecido do achado... mas STAT sabia que LAZ deveria sempre voltar à sala, cada vez que o efeito hipnótico fosse passando... não só para ouvir a música que segundo STAT acalmava as dores da alma, como também para ouvir as palavras de STAT, dando ânimo para que todos procurassem sempre, uma vida melhor no túnel, em perfeita harmonia. E não pensassem mais em nenhuma bobagem como sair do túnel, por exemplo, como alguns já haviam enlouquecido e colocado em risco, não só a vida dos companheiros, como também, desestruturado o poder de STAT, que só conhecia o túnel que lhe auferia poder máximo, fora do túnel, temia pelo seu próprio futuro. Se houvessem outros lugares...que houvessem! Poderiam ser felizes ali, e STAT seria o último a desejar querer sair de onde reinava absoluto.
LAZ ouvia o coro de vozes exaltando a excelência do Senhor Invisível... Aquele que STAT sempre citava em seus sermões, e que LAZ soubera desde criança, mas nunca O vira. "Se existe este Senhor Invisivel, que STAT ilustrava à nossa imagem e semelhança, só que muito maior em estatura e poderes auferidos... , este Senhor deveria habitar fora daquele túnel... mas sua influência nos alcançaria , pensou LAZ enquanto o sono lhe vinha, sim, sua influência superior certamente nos alcança, pois continuamos o milagre da vida, sem nenhum mérito nosso! E assim LAZ adormeceu no templo.


***

Alguns enlouqueciam no túnel. Como era o caso de SUTO, conhecido pelo costume impertinente de andar cabisbaixo, falando de si para si, "eu quero luz", e arrastando as pernas cansadas, como se estas lhe pesassem mais do que podia aguentar. LAZ lembrou-se de que também conhecera o ancião da praça, e este lhe dissera sobre tais inquietações, que, o ser que tivesse experimentado de alguma forma, esses relâmpagos da memória, quer através de sonhos durante o sono, ou que seus olhos tenham pousado sobre qualquer inscrição simbólica que relatasse à mente o mistério daquela existência, este ser jamais teria sossego. Seria SUTO um deles? Que acometido por inquietações de lembranças distorcidas, andava a reclamar a luz pela qual achava ter o direito? LAZ olhava para SUTO que se aproximava, gemendo "eu quero luz"... e o abordou. SUTO entre surpreendido e contente, pois já ninguém lhe dispensava atenção,perguntou de sopre: "veio trazer-me luz? Tu Sabes o segredo? Tem algo a ensinar-me? Por que queres luz? -perguntou-lhe LAZ. -Porque descobri que somos seres vindos da luz, tudo leva-me a acreditar nisto. Mas não sei como chegar a ela... - Já te acostumastes a enxergar no escuro. Para quê queres a luz? - insistiu LAZ. - Quero ser melhor do que sou. Aprenderei a enxergar a luz. - E o que faria com tanta luz? - Seria melhor! Sei que ela existe e agora a quero. SUTO derrubou o corpo cansado sobre as pernas cruzadas ao chão, e LAZ sentou-se a seu lado. SUTO não falava coisa com coisa, parecia delirar, não parava um só momento de contar o que sabia, e a citar livros e mais livros que tido passado olhos, aproveitando que alguém se dispunha a ouví-lo, despejava tudo que julgava saber. Enquanto LAZ o ouvia, desenhava no chão as figuras que tinha visto nas pedras que encontrou, a fim de constatar se SUTO reagiria a elas. Mas SUTO apenas as olhava como se não as visse, e falava até a sofreguidão. LAZ levantou-se para ir embora, quando SUTO o agarrou pelo braço, gritando indignado: -Conheço a todas estas coisas, tu não me ensinastes nada! Cadê a luz que eu esperava que me daria? Não acrescestes nada ao que já sei! E batia os pés furioso no chão atrás de LAZ. À frente de LAZ, como por encanto, apareceu o ancião da praça, que o olhou sorrindo: - Oi, ancião...

- Todos me chamam de louco... voce me chamou de ancião... Deixastes de olhar com os olhos dos outros, e passastes a olhar com seus próprios? - e riu-se simpático. Depois olhou para SUTO que tinha ficado para trás e ainda esbravejava, e falou: - Os homens de STAT o pegaram... nenhum símbolo ou livro lhe dirá mais nada. Os servos de STAT ocuparam-se em lhe traduzir a cada um deles, como STAT ordenou, e assim os homens colocaram significações próprias aos escritos, aplicando-os às ciências do túnel, e limitando a existência e significado delas a todas as coisas que aqui existe. STAT domina e tem influência sobre todas as áreas. Tanto a ciência, como as artes existem conforme STAT quer que estas sejam. Nalgumas coisas STAT age inocentemente, achando que faz o melhor para os habitantes daqui, noutras ele tem consciência do que faz, mas não espere, moço, fazer com que SUTO passe a ver as coisas de outro modo, desde que tomou conhecimento das "mensagens", já lhe foram imediatamente traduzidas de modo distorcido. Por isto, inconscientemente sofre e pede luz. Tomai cuidado, vós, meu filho, para que as mensagens que STAT semeia a fim de fechar-vos as mentes, não seja acolhida por vós. Pois quando lhe vir a verdade, já não poderás assimilá-la. Amanhã STAT dará uma festa, a fim de divertir os conformados e distrair os inquietos de suas inquietudes. Haverão palhaços, danças e mulheres sensuais. Depois muitas recitações de "salve" ao Senhor Invisível. Tudo isto servirá, para que inquietos como vós, se mantenham distraídos por algum tempo. E esqueçam por momentos os tormentos de vossos corações...Deves participar de tudo que haja neste túnel, mesmo que tua alma já esteja cansada de se divertir inutilmente. Isolar-se da rotina comum a todos os habitantes, não lhe trará nenhum benefício. Agora vai, meu filho, e guarda em teu coração, tudo que hoje absorvestes. Não procures em nenhum livro explicação para tuas indagações, pois todos os livros do túnel estão manchados com as idéias de STAT!

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